segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Sabina ( Artur Azevedo )

I
Havia três anos que o Bacharel Figueiredo era o amante da viúva Fontes. E marido seria se ela
quisesse; mas Sabina - Sabina era o seu nome - dera-se mal com o casamento, e não queria
experimentá-lo de novo.
Um mês depois do seu primeiro encontro com o Bacharel Figueiredo, este dizia-lhe:
- Eu amo-te, tu amas-me, eu sou livre, tu livre és: case-mo-nos!
- Não! respondia ela, não! não! não!...
- Por quê, meu amor?
- Porque esse fogo, esse ímpeto, esse entusiasmo que te lançou nos meus braços, tudo isso
desapareceria desde que eu fosse tua mulher!
- Mas a sociedade...
- Ora a sociedade! Sou bastante independente para me não importar com ela.
- Tua filhinha...
- Tem apenas quatro anos! está na idade em que se olha sem ver. Demais, não quero dar-lhe
um padrasto. Amemo-nos, e deixemos em paz o padre e o pretor.

II
Ficaram efetivamente em paz o ministro de Deus e o representante da lei, mas nem por isso o
bacharel deixou de enfarar-se ao cabo de dois anos, agradecendo aos céus o haver a viúva
recusado o casamento que ele lhe propusera num momento de verdadeira alucinação.
Havia muitos meses já que o moço ruminava um plano de separação definitiva, mas não sabia
de que pretexto lançar mão para chegar a esse resultado. Sabina guardava-lhe, ou, pelo menos,
parecia guardar-lhe absoluta fidelidade, e nunca lhe dera motivo de queixa.
Nestas condições lembrou-se o bacharel de consultar o velho Matos, que o honrava com a sua
amizade.

III
O velho Matos era um solteirão rico e viajado, que na sua tempestuosa mocidade tivera um
número considerável de aventuras galantes, e era ainda considerado um oráculo em questões
de amor. Muitos mancebos inexperientes recorriam aos seus conselhos, e tais e tão discretos
eram estes, que eles alcançavam quanto pretendiam.
O Bacharel Figueiredo foi ter a uma velha chácara da Gávea, onde o avisado conselheiro vivia
das suas recordações e de alguns prédios e apólices milagrosamente salvos do naufrágio dos
seus haveres.
O moço foi recebido com muita amabilidade, e sem preâmbulos expôs a situação:
- Há três anos sou o amante de uma senhora viúva, distinta e bem educada; quero acabar com
essa ligação; que devo fazer?
- Antes de mais nada, é preciso que eu saiba o motivo que o desgostou. Tem ciúmes dela?
- Ciúme... - Oh! se a conhecesse!... É um modelo de meiguice, fidelidade e constância!
- Existe alguma particularidade que o afaste desse modelo?... quero dizer: uma enfermidade... -
um defeito físico... o mau hálito, por exemplo?
- Pelo amor de Deus!... É uma mulher sadia, limpa, cheirosa.
- Então, é feia?
- Feia?! Uma das caras mais bonitas do Rio de Janeiro!
- Tem mau gênio?
- Uma pombinha sem fel!
- Então é tola, vaidosa, pedante, presumida, afetada, asneirona...?
- Nada disso! é uma mulher de espírito, instruída e perfeitamente educada.
- É devota? Anda metida nas igrejas?... passa horas esquecidas a rezar diante de uni oratório?...
- Apenas vai ouvir missa aos domingos.
- Talvez abuse do piano, ou desafine a cantar...
- Não canta; toca piano, mas não abusa. Digo-lhe mais: interpreta admiravelmente Chopin.
- Você gosta de outra mulher?
- Juro-lhe que não.
- Bom; sei o que isso é; você aborreceu-se dela porque nunca lhe descobriu defeitos. É boa
demais.
- Talvez. O caso é que esta ligação já durou mais tempo do que devia, e urge acabar com ela. A
Sabina tem uma filha que está crescendo a olhos vistos, e não é conveniente fazer com que
essa criança algum dia a obrigue a corar.. . Depois, eu sou moço.. . tenho um grande horizonte
diante de mim... enceto agora a minha carreira de advogado... esta ligação pode prejudicar
seriamente o meu futuro - não acha?
O velho Matos calou-se, e, passados alguns momentos, perguntou:
- Quer então você separar-se dessa mulher ideal?
- Quero.
- A sua resolução é inabalável?
- Inabalável.
- Só há um meio de o conseguir.
- Qual?
- Desapareça.
- Ela irá procurar-me onde quer que eu esteja.
- Boa dúvida, mas faça-se invisível, vá para a roça, e volte ao cabo de oito dias. Naturalmente
ela aparece, e pergunta em termos ásperos, ou sentidos, o motivo do seu procedimento. Munase
então de um pouco de coragem, e responda-lhe o seguinte: "Á vista de um fato que chegou
ao meu conhecimento, nada mais pode haver de comum entre nós. Nã0 me peça explicações:
meta a mão na consciência, e meça a extensão do meu ressentimento!"
- Mas que fato? Pois eu já não lhe disse que a Sabina e um modelo de...
- Meu jovem amigo, interrompeu o velho Matos, não há mulher, por mais amante, por mais
dedicada, por mais virtuosa que seja, que não tenha alguma coisa de que a acuse a
consciência. A sua Sabina, em que pese às aparências, não deve, não pode escapar à lei
comum; desde que você se refira positivamente a um fato, embora não declare que fato é, ela
ficará persuadida de que o seu amante veio ao conhecimento de alguma coisa que se passou, e
que a pobrezinha supunha coberta pelo véu de impenetrável mistério.
- Mas a Sabina, quando mesmo tenha algum pecadinho na consciência (eu juro-lhe que o não
tem!) com certeza há de protestar energicamente e exigir que eu ponha os pontos nos ii; há de
querer que eu diga francamente a que fato aludo, e... - e vamos lá! como acusá-la sem consentir
que ela se defenda?
- Ah! meu amigo! se você pretende aplicar razões jurídicas ao caso, não arranja nada. A
jurisprudência do amor e extravagante e absurda. Acuse, retire-se, e não entre em explicações.
Afianço-lhe que o êxito é seguro.

IV
Se bem o disse o velho Matos, melhor o fez o Bacharel Figueiredo. Retirou-se durante alguns
dias para uma fazenda sem dizer adeus nem dar satisfações a viuva.
Imagine-se o desespero dela. Quando soube que o seu amante voltara dessa misteriosa
viagem, foi - e era a primeira vez que lá ia - foi à casa de pensão em que ele morava e entrou
como uma doida no seu quarto.
- Então? que quer isto dizer?... exclamou a mísera caind0 numa cadeira, a soluçar
desesperadamente.
Ele até então nunca a tinha visto chorar. A viúva apresentava-se-lhe sob um aspecto estranho;
parecia-lhe agora mais apetitosa.
Entretanto, fazendo um esforço violento sobre si mesmo, o bacharel franziu os sobrolhos e
repetiu as palavras d0 velho Matos:
- Á vista de um fato que chegou ao meu conhecimento, nada mais pode haver de comum entre
nós!...
Sabina ergueu-se como tocada por uma mola. Ele continuou:
- Não me peça explicações; eu não lhas daria! Meta a mão na consciência, e compreenda o
meu eterno ressentimento...
Dizendo isto, saiu do quarto batendo com estrondo a porta, e deixando a pobre Sabina
aparvalhada.

V
No dia seguinte o bacharel recebeu uma carta concebida nos seguintes termos:
"Figueiredo - Tens razão: nada mais pode haver de comum entre nós; aprecio e respeito a
delicadeza dos teus sentimentos.
"Eu vivia na ilusão de que tudo ignorarias, de que jamais virias ao conhecimento de uma
fraqueza que tão desgraçada me faz neste instante. Vejo que o miserável não guardou segredo,
e fez chegar aos teus ouvidos a história de uma vergonhosa aventura a que fui arrastada num
momento de desvario e de que logo me arrependi amargamente.
"Não me perdoes, porque o teu perdão seria um atestado de péssimo caráter, mas ao menos
sabe que foi a tua frieza, o teu desprendimento, o pouco caso com que então começavas a
tratar-me, que me determinaram a dar o mau passo que dei e que tantas lágrimas me tem
custado.
"Adeus; lembra-te sempre da infeliz Sabina, que te ama ainda como sempre te amou, mas não
procures tornar a vê-la, porque ela é a primeira a confessar que não é digna de ti. Console-te a
certeza de que a minha vida vai ser de agora em diante um inferno de remorsos e de saudades.
Adeus para sempre... - Sabina."

VI
Essa carta produziu terrível efeito no espírito do Bacharel Figueiredo.
Era então certo?... ela pertencera a outro homem?...
E o seu amor extinto despertou mais violento, mais impetuoso que nunca. Passavam-lhe
rapidamente pela memória, num turbilhão demoníaco, todos os deliciosos momentos que lhe
proporcionara a meiga viúva, e o ciúme, um ciúme implacável, que o aniquilava e embrutecia,
excitava-o tiranicamente.
Ele correu à casa de Sabina, e encontrou fechadas todas as portas e janelas. Informou-o um
vizinho de que a viúva se retirara na véspera, com a menina e as criadas, levando malas e
embrulhos.
Durante oito dias o bacharel, desesperado, enfurecido, mortificado pela insônia, pelos ciúmes,
pelas saudades, correu á casa dela: tudo fechado!...
Ninguém lhe dava notícias de Sabina! Aonde iria ela?.. - onde estava?...
Afinal, um dia encontrou a porta aberta e entrou como um doido, tal qual Sabina entrara na casa
de pensão. Encontrou-a no seu quarto, e, sem dizer palavra, sufocado pelo pranto, beijou-lhe
sofregamente a boca, os olhos, o nariz, as orelhas, beijou-a toda, e, rasgando-lhe o vestido,
atirou-a brutalmente sobre o leito, sequioso por entrar de novo na posse daquele corpo e
daquele sangue.
Mas a viúva, debatendo-se heroicamente, conseguiu repeli-lo, e pôs-se de pé, gritando:
- Não! não! não, Figueiredo!... Tudo acabou entre nós! Eu não sou digna de ti!...
- Não digas isso pelo amor de Deus! Eu perdôo-te! Eu amo-te! Eu adoro-te!...
- Se realmente me amas, se me adoras, então és tu que não és digno de mim!
Dizendo isto, fugiu do quarto e foi para junto da filha, onde se julgou a coberto das perseguições
do bacharel. Efetivamente, este deixou-se ficar no quarto, atirado sobre o leito e soluçando
convulsivamente.

VII
Durante alguns dias a mesma cena se reproduziu, mas afinal restabeleceram-se as pazes.
Sabina cedeu sob duas condições: primeira, - o bacharel só entraria no quarto dela com escala
pela pretoria e pela igreja: segunda, - jamais lhe pediria explicações sobre o fato que
determinara a crise.
VIII
Três meses depois do casamento, o velho Matos, que se tornara íntimo da casa, achando-se a
sós com Sabina, contou-lhe a história do conselho dado ao bacharel, conselho que foi a causa
imediata de tão extraordinários acontecimentos, e que tão negativo efeito produzira.
- Mas o que o senhor não sabe, disse ela, é que eu nunca tive outro amante senão o Figueiredo.
- Que me diz, minha senhora?
- Juro-lhe pela vida de minha filha que falo verdade.
- Mas valha-me Deus! o pobre rapaz está convencido de...
- Deixá-lo estar. É um pobre-diabo, feito da mesma lama que os outros homens. Confessei-lhe
uma culpa que não tinha, porque adivinhei que só assim poderia reconquistá-lo.
- Mas agora estão casados e muito bem casados; é preciso dissuadi-lo.
- Não; ainda é cedo; mais tarde.. . Esse homem que ele não sabe quem é... essa aventura
misteriosa.... essa ignóbil mentira é a garantia da minha felicidade. Enquanto ele supuser que
não fui dele só, será só meu.
- Parabéns, minha senhora; pode gabar-se de ter embrulhado o velho Matos.
- Ora, o velho Matos! Quem é o velho Matos? Quem é o senhor? Algum psicólogo? Saiba que
uma mulher inteligente é capaz de embrulhar Paul Bourget...
- Upa! upa! É capaz de enfiar pelo fundo de uma agulha o próprio Balzac! Repito: parabéns,
minha senhora!

Deixa-me Falar-te de Amor

Nesta era em que tudo é fabricado, em que nada é natural, em que nada é puro; em que os primeiros beijos se trocam por telemóvel, se fala por sms e os ditos «encontros românticos» acontecem no cinema, entre um balde de pipocas e um copo de coca-cola, nesta era, que já não é minha, já não é tua, já nem é nossa; deixa-me falar-te de amor. Não quero falar deste «amor» novo, feito de «roda-bota-fora», que nasce podre e é vazio. Não te quero falar do amor para passar tempo, que se joga na Internet; nem daquele que se conhece num bar ou numa discoteca.

Não: deixa-me falar-te de amor como o conheço, da mesma forma lamechas e (hoje) tão fora de moda; a mesma que te ensinaram os teus pais ou os teus avós; como era antigamente, quando passeavam junto ao rio, por vezes de mãos dadas, e coravam ainda, se encontravam alguma cara conhecida. Deixa-me falar-te do amor que me ensinaste. O amor que me ensinaste começou por um acaso, porque, por acaso, eu estava sozinha e tu também. O amor que me ensinaste não foi cozinhado nem confeccionado a propósito.

No nosso amor, tu dás-me a mão e eu coro; convidas-me para sair e eu hesito; brincas com os meus caracóis e eu gosto; bebemos chá e ficamos ébrios; passeamos à beira-rio e pode ser que nos beijemos. No nosso amor, não somos só amantes, mas somos cúmplices. E companheiros. Olhas para mim e lês-me nas entrelinhas. Olho para ti e sei-te de cor. Sorrio e mergulhas nesse sorriso. Abraças-me e absorves-me inteira. Dizes-me «amo-te» e eu acredito.
O amor que me ensinaste é puro, é natural, é biológico, sem corantes nem conservantes. Mas deixa-me contar-te um segredo: nesta era, que já não é minha, já não é tua, já nem é nossa; o nosso amor, ainda encanta!

Ana Rita da Silva Freitas Rocha, in 'Textos de Amor – Museu Nacional da Imprensa'

A Roupa Nova do Imperador

A ROUPA NOVA DO IMPERADOR

Hans Christian Andersen

Há muitos e muitos anos havia um Imperador tão apaixonado pelas roupas novas, que gastava com elas todo o dinheiro que possuía. Pouco se incomodava com seus soldados, com o teatro ou com os passeios pelos bosques, contanto que pudesse vestir seus trajes. Tinha um para cada hora do dia, e, ao invés de se dizer dele o que se diz de qualquer imperador: "Está na Câmara do Conselho, dizia-se sempre a mesma coisa: "O Imperador está se vestindo".

Na capital em que ele vivia, a vida era muito alegre; todos os dias chegavam multidões de forasteiros para visitá-la, e, entre eles, certa ocasião chegaram dois vigaristas. Fingiram-se de tecelões, dizendo-se capazes de tecer os tecidos mais maravilhosos do mundo.

E não somente as cores e os desenhos eram magníficos como também os trajes que se faziam com aqueles tecidos possuíam a qualidade especial de serem invisíveis para qualquer pessoa que não tivesse as qualidades necessárias para desempenhar suas funções e também que fossem muito tolas e presunçosas.

- Devem ser trajes magníficos - pensou o Imperador. - E se eu vestisse um deles, poderia descobrir todos aqueles que em meu reino carecessem das qualidades necessárias para desempenhar seus cargos. E também poderei distinguir os tolos dos inteligentes. Sim, estou decidido a mandar tecer uma roupa para mim, a qual me servirá para tais descobertas.

Entregou a um dos tecelões uma grande quantia como adiantamento, a fim de que os dois pudessem começar imediatamente com c esperado trabalho.

Os dois vigaristas prepararam os teares e fingiram entregar-se ao trabalho de tecer mas o certo é que no mesmo não havia nenhum fio nas lançadeiras. Antes de começar pediram uma certa quantidade da seda mais fina e fio de ouro da maior pureza e guardaram tudo em seus alforjes e depois começaram a trabalhar, isto é, fingindo fazê-lo, com os teares vazios.

- Gostaria de saber como vai o trabalho dos tecelões - pensou um dia o bondoso Imperador.

Todavia, ficou um tanto aflito ao pensar que alguém que fosse tolo ou não estivesse capacitado para exercer sua função, não poderia ver o tecido. Não temia por si mesmo, mas achou mais prudente enviar uma outra pessoa, para que lhe desse conta daquilo. Todos os habitantes da cidade conheciam as maravilhosas qualidades do tecido em questão, e todos, também, desejavam saber, por esse meio, se seu vizinho ou amigo era um tolo.

- Mandarei meu fiel primeiro ministro visitar os tecelões - pensou o Imperador. Será o mais capacitado para ver o tecido, porque é um homem muito hábil e ninguém cumpre seus deveres melhor do que ele.

E assim o bom e velho primeiro ministro se dirigiu para o aposento em que os vigaristas trabalhavam nos teares completamente vazios.

- Deus me proteja! - pensou o ancião, abrindo os braços e os olhos. - Mas se eu não vejo nada!

No entanto, evitou dize-lo.

Os dois vigaristas pediram-lhe que fizesse o favor de aproximar-se um pouco mais e rogaram-lhe que desse a sua opinião a respeito do desenho e do colorido do tecido. Mostraram o tear vazio e o pobre ministro, por mais que se esforçasse para ver, não conseguia enxergar coisa alguma, porque não havia nada para ver.

- Deus meu! - pensava. - Será, possível que eu seja tão tolo assim? Nunca me pareceu e é preciso que ninguém o saiba. Talvez eu não esteja capacitado a desempenhar a função que ocupo. O melhor será fingir que estou vendo o tecido.

- Não quer dar a sua opinião, senhor ? - perguntou um dos falsos tecelões.

- E' muito lindo! Faz um efeito encantador - exclamou o velho ministro, fitando através de seus óculos. - O que mais me agrada são o desenho e as maravilhosas cores que o compõem. Asseguro-lhes que daremos conta ao Imperador do quanto gosto de seu trabalho, muito bem aplicado e lindíssimo.

- Ficamos muito honrados em ouvir tais palavras de vossos lábios, senhor ministro replicaram os tecelões.

Começaram então a dar-lhe detalhes do complicado desenho e das cores que o formavam. O ministro ouviu-os com a maior atenção, com a idéia de poder repetir suas palavras quando estivesse na presença do Imperador.

A seguir os dois vigaristas pediram mais dinheiro, mais seda e mais fio de ouro, para que pudessem prosseguir com o trabalho. Porém, assim que receberam o solicitado, guardaram-no como antes. Nem um só fio foi colocado no tear, embora eles fingissem continuar trabalhando apressadamente.

O Imperador enviou outro fiel cortesão para dar-se conta dos progressos do trabalho dos falsos tecelões e a fim de saber se eles demorariam muito para entregar o tecido. A este segundo enviado aconteceu a mesma coisa que Po primeiro ministro, isto é, mirou e remirou o tear vazio, sem ver tecido algum.

- Não acha que é uma fazenda maravilhosa? - perguntaram os vigaristas mostrando e explicando um desenho imaginário e um colorido não menos fantástico, que ninguém conseguia ver.

- Sei que não sou tolo - pensava o cortesão; - mas se não vejo o tecido, é porque não devo ser capaz de exercer minha função à altura da mesma. Isso me parece estranho. Mas é melhor não dar a perceber esse fato.

Por esse motivo falou no tecido que não via e manifestou seu entusiasmo pelo colorido maravilhoso e pelos originais desenhos.

- Ali está algo realmente encantador, disse mais tarde ao Imperador, quando prestou contas de sua visita.

Por sua vez, o Imperador achou que devia ir ver o famoso tecido, enquanto ainda estivesse no tear. E assim, acompanhado por um escolhido grupo de cortesãos, entre os quais se encontravam o primeiro ministro e o outro palaciano, que haviam fingido ver o tecido, foi fazer uma visita aos falsos tecelões, que com o maior cuidado trabalhavam no tear vazio, em meio à maior seriedade.

- E' magnífico! - exclamaram o primeiro ministro e o palaciano. - Digne-se Vossa Majestade a olhar para o desenho. Que cores maravilhosas!

E apontavam para o tear vazio, pois não tinham dúvidas de que as outras pessoas viam o tecido.

- Mas o que é isto? - pensou o Imperador. - Não estou vendo nada! Isso é terrível! Serei um tolo? Não terei capacidade para ser Imperador? Certamente não poderia acontecer-me nada pior.

- E' realmente uma beleza! - exclamou logo depois. - O tecido merece a minha melhor aprovação.

Manifestou a sua aprovação por meio de alguns gestos, enquanto olhava para o tear vazio, pois ninguém poderia induzi-lo a dizer que não via coisa alguma.

Todos os outros cortesãos olhavam por sua vez. Mas não viam nada. Porém, como nenhum queria dar parte de tolo ou de incapaz, fizeram coro com as palavras de Sua Majestade.

- E' uma beleza! - exclamaram em coro.

E aconselharam o Imperador que mandasse fazer uma roupa com aquele tecido maravilhoso, a fim de estreá-la numa grande procissão que devia realizar-se daí a alguns dias.

Os elogios corriam de boca em boca e todos estavam entusiasmados. E o Imperador condecorou os dois vigaristas com a ordem dos cavaleiros, cuja insígnia poderiam usar e concedeu-lhes o título de "Cavaleiros Tecelões".

Os dois vigaristas ficaram a noite toda trabalhando, à luz de dezesseis velas, na noite anterior ao dia da procissão; desejavam que todos testemunhassem o grande interesse que eles demonstravam em terminar a roupa do soberano. Fingiram tirar a fazenda do tear, cortaram-na com tesouras enormes e costuraram-na com agulhas sem linha de espécie alguma. Finalmente disseram:

- Já está pronto o traje de Sua Majestade.

O Imperador, acompanhado por seus mais nobres cortesãos, foi novamente visitar os vigaristas, e um deles, levantando um braço, como se segurasse uma peca de roupa, disse:

- Aqui estão as calças. Este é o colete. Veja Vossa Majestade o casaco. Finalmente, dignai-vos a examinar o manto.

"Estas peças pesam tanto quanto uma teia de aranha. Quem as usar mal sentirá o seu peso. E esta é uma de suas maiores qua1 Idades."

Todos os cortesãos concordaram, mesmo irão vendo coisa alguma, pois na realidade não havia rida para ver, já que nada havia.

- Dignai-vos tirar o traje que leva

Disse um dos falsos tecelões - e assim poderá experimentar a roupa nova na frente do espelho.

E o Imperador tirou a roupa que vestia e os impostores fingiram entregar-lhe sucessivamente e ajudá-lo a vestir cada uma das peças que compõem um traje. Fingiram colocar algo ao redor de sua cintura e o Imperador, nesse meio tempo, virava-se uma vez ou outra para o espelho, a fim de contemplar-se.

- Que bem assenta este traje em Sua Majestade. Como está elegante. Que desenho e que colorido! É uma roupa magnífica!

- Lá fora está o dossel sob o qual irá Vossa Majestade tomar parte na procissão - disse o mestre de cerimônias.

- Ótimo. já estou pronto - disse o Imperador. - Acham que esta roupa me assenta bem?

E novamente mirou-se no espelho, a fim de fingir que se admirava vestido com a roupa nova.

Os camaristas, que deviam carregar o manto, inclinaram-se fingindo recolhê-lo no chão e logo começaram a andar com as mãos no ar. Também não se atreviam a dizer que não viam coisa alguma.

O Imperador foi ocupar seu lugar no cortejo da procissão embaixo do luxuoso dossel e todos os que estavam nas ruas e nas janelas exclamaram:

- Como está bem vestido o Imperador! Que cauda magnífica! A roupa assenta nele como uma luva!

Ninguém queria dar a perceber que não podia ver coisa alguma, para não passar por tolo ou por incapaz. O caso é que nunca uni a roupa do Imperador alcançara tanto sucesso.

- Mas eu acho que ele não veste roupa alguma! - exclamou então um menino.

- Ouçam! Ouçam o que diz esta criança inocente! - observou seu pai a quantos o rodeavam.

Imediatamente todo mundo se comunicou pelo ouvido as palavras que o menino acabava de pronunciar.

- Não veste roupa alguma. Foi isso o que assegurou este menino.

- O Imperador esta sem roupa! - começou a gritar o povo.

O Imperador fez um trejeito, pois sabia que aquelas palavras eram a expressão da verdade, mas pensou:

- A procissão tem de continuar.

E assim, continuou mais impassível que nunca e os camaristas continuaram segurando a sua cauda invisível.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

" Por que não vão ajudar crianças com fome?! "

1) Quem faz esta pergunta admite que existem dois tipos de pessoas no mundo:

As Pessoas Que Ajudam e as Pessoas Que Não Ajudam.

Além disso, admite também que faz parte das Pessoas Que Não Ajudam , afinal, do contrário, diria "Por que não me ajudam a defender as crianças com fome?", ou "Venham defender comigo as crianças com fome!", ou "Não, obrigada, vou defender as crianças com fome".
Então ela se coloca claramente através de sua escolha de palavras como uma Pessoa Que Não Ajuda.

É curioso a Pessoa Que Não Ajuda, não faz nenhum esforço para ajudar, mas, sim, para tentar dirigir as ações das Pessoas Que Ajudam.
É bastante interessante. Se eu fosse até sua casa organizar sua vida financeira sob a alegação de que eu sei muito mais sobre administração familiar eu estaria interferindo, mas ela se sente no direito de interferir nas ações que uma pessoa resolve tomar para aliviar os problemas que ela encontra ao seu redor.
É uma Pessoa Que Não Ajuda, mas ainda assim quer decidir quem merece ajuda das Pessoas Que Ajudam e o nome disso é "prepotência".


2) Pessoas Que Ajudam nunca vão ajudar as "crianças com fome". Nem tampouco os "velhos", os "doentes" ou os "despossuídos". E sabe por que?
Porque "crianças com fome" ou "velhos" ou qualquer outro destes é abstrato demais. Não têm face, não são ninguém. São figuras de retóricas de quem gosta de comentar sobre o estado do mundo atual enquanto beberica seu uisquezinho no conforto de sua casa.
Pessoas Que Ajudam agem em cima do que existe, do que elas podem ver, do que lhes chama atenção naquele momento. Elas não ajudam "os velhos", elas ajudam "os velhos do asilo X com 50,00 reais por mês".
Elas não ajudam "as crianças com fome", elas ajudam "as crianças do orfanato Y com a conta do supermercado".
Elas não ajudam "os doentes", elas ajudam o "Instituto da Doença Z com uma tarde por semana contando histórias aos pacientes".
Pessoas Que Ajudam não ficam esperando esses seres vagos e difusos como as "crianças com fome" baterem na porta da sua casa e perguntar se elas podem lhe ajudar.
Pessoas Que Ajudam vão atrás de questões muito mais pontuais.
Pessoas Que Ajudam cobram das autoridades punição contra quem maltrata uma cadela indefesa sem motivo.
Pessoas Que Ajudam dão auxílio a um pai de família que perdeu o emprego e não tem como sustentar seus filhos por um tempo.
Pessoas Que Ajudam tiram satisfação de quem persegue uma velhinha no meio da rua.
Pessoas Que Ajudam dão aulas de graça para crianças de um bairro pobre.
Pessoas Que Ajudam levantam fundos para que alguém com uma doença rara possa ir se tratar no exterior.
Pessoas Que Ajudam não fogem da raia quando vêem QUALQUER COISA onde elas possam ser úteis. Quem se preocupa com algo tão difuso e sem cara como as "crianças com fome" são asPessoas Que Não Ajudam .


3) Pessoas Que Ajudam são incrivelmente multitarefa, ao contrário da preocupação que asPessoas Que Não Ajudam manifestam a seu respeito. (Preocupação até justificada porque, afinal, quem nunca faz nada realmente deve achar que é muito difícil fazer alguma coisa, quanto mais várias).
O fato de uma Pessoa Que Ajuda se preocupar com a punição de quem burlou a lei e torturou inutilmente um animal não significa que ela forçosamente comeu o cérebro de criancinhas no café da manhã. Não existe uma disputa de facções entre Pessoas Que Ajudam, tipo "humanos versusanimais".
Geralmente as Pessoas Que Ajudam, até por estarem em menor número, ajudam várias causas ao mesmo tempo. Elas vão onde precisam estar, portanto muitas das Pessoas Que Ajudam que acham importante fazer valer a lei no caso de maus-tratos a um animal são pessoas que ao mesmo tempo doam sangue, fazem trabalho voluntário, levantam fundos, são gentis com os menos privilegiados e batalham por condições melhores de vida para aqueles que não conseguem fazê-lo sozinhos.

Talvez você não saiba porque, afinal, as Pessoas Que Ajudam não saem alardeando por aí quando precisam de assinaturas para dobrar a pena para quem comete atrocidades contra animais, que estão fazendo todas estas outras coisas, quase que diariamente. E acho que é por isso que você pensa que se elas estão lutando por uma causa que você "não curte", elas não estão fazendo outras pequenas ou grandes ações para os diversos outros problemas que elas vêem no mundo. Elas estão, sim. E se fazem ouvir como podem, porque sempre tem uma Pessoa Que Não Ajuda no meio para dar pitaco.

Então, como dizia meu avô, "muito ajuda quem não atrapalha".
Porque a gente já tem muito trabalho ajudando pessoas e animais que precisam (algumas até poderiam ser chamadas tecnicamente de "crianças com fome", se assim preferem os que não ajudam).

(Este texto pode e deve ser reproduzido) - Escrito em 13.04.2005


"A vida é valor absoluto. Não existe vida menor ou maior, inferior ou superior. Engana-se quem mata ou subjuga um animal por julgá-lo um ser inferior. Diante da consciência que abriga a essência da vida, o crime é o mesmo." (Olympia Salet)

Rossanah

"Quando o homem aprender a respeitar até o menor ser da criação,
seja animal ou vegetal,ninguém precisará ensiná-lo
a respeitar seu semelhante."(Albert Shwweitzer)